Um conto sobre a praça

O abraço da Anaconda
Conflitos e afetos com a Praça Raul Soares
Este é o produto do Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) - MG, feito pelo aluno Gabriel Rodrigo Andrade dos Santos, orientado pelo professor Frederico Salomé.
- Vamos, desce aqui, meu baú tá cheio de roupa, mas você pode sentar.
Um apartamento de apenas três cômodos. Sala ampla que também é copa e quarto. Nela, o baú de roupas e uma mesa pequena com apenas duas cadeiras ao lado da porta da cozinha. De frente a essa porta, no que arrisco chamar de minúsculo corredor, fica o banheiro. Foi nesse apartamento, com tudo muito arrumado, aconchegante e convidativo, que Ana Cristina me recebeu.
Por vezes, podemos imaginar que espaços grandiosos são sinônimos de alegria e satisfação pessoal, mas essa não parece ser a realidade de quem vive no Edifício JK. No coração e centro da cidade de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, fica localizado o edifício plantado a poucos metros da Praça Raul Soares, criada para ser o marco zero de BH.

Baú onde Ana Cristina guarda algumas roupas.
Para quem mora no JK, nada parece ser muito complicado. Pelo menos é o que conta Ana Cristina Faria, de 68 anos, moradora do edifício há nove anos.
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Aqui você não precisa de carro e de ônibus para nada. Tem todos os supermercados, bar, restaurante… e tudo o que precisar, tem perto daqui.
Ao atrair comércios, bares, restaurantes, supermercados e padarias, a região torna-se interessante para quem busca facilidade, pois oferece acesso a uma gama de serviços necessários no cotidiano. Apenas o Edifício JK, em seus dois blocos, abriga cerca de 5 mil moradores, um monte de pessoas que demandam um alto número de serviços. A proximidade com a Praça é quase um privilégio para os que moram nos arredores. Mas, como a maioria dos espaços ultra-urbanizados, a região atrai também os menos afortunados.
Da janela de Ana, à altura de 28 andares, observo a praça. Apesar da distância, conseguimos ver um monte de barracas e outras acomodações de pessoas em situação de rua. São cidadãos e cidadãs que, seja por força maior ou até mesmo por vontade própria, vivem como nômades pela cidade. Indo de praça em praça, de região em região, ocupam estes lugares públicos até a chegada dos caminhões da prefeitura para retirá-los dali, forçando uma fuga até alguma rua ou praça próxima que os acomode novamente.

Foto de Ana Cristina me mostrando a vista que ela tem de sua sala para a praça Raul Soares.
I. Outros olhares
Caminhar pela praça - e ver as vidas acontecendo ali, diante dos olhos - nos faz refletir sobre mudanças. Às vezes imperceptíveis na correria do cotidiano, mas em outros momentos, quando analisadas com mais calma, levantam pensamentos mais profundos sobre as modificações na região. Por muito tempo, a praça e seu entorno tiveram que lidar com o abandono do poder público. Por causa disso, os frequentadores da região viram a população de rua aumentando cada vez mais, tomando a praça como seu “lar”.
É incômodo e triste assistir, impassível, a essa situação. Mas a praça continua lá, acolhedora e amedrontadora, lar e passagem. Em meados de maio, é fácil sentir calor ao andar pela praça. Apesar dos grandes prédios aos arredores, o sol bate direto na praça com poucos recursos de sombra, a não ser das árvores que ainda resistem de pé. A sensação é de que esse calor do sol, que vai direto na cabeça, frita os miolos e colabora para a sensação de um ambiente hostil, quase inóspito.
Ainda não consegui estabelecer, até esse momento, um lugar de conforto na praça, pois mal sei as histórias desse lugar. Para quem não é da região - meu caso, por exemplo, que venho aqui só a passeio (ou de passagem, para ser mais preciso) -, é fácil sentir esses desconfortos provocados pelas percepções criadas a partir de pré-conceitos estabelecidos sobre locais que abrigam grande quantidade de pessoas em situação de rua.
Enquanto caminhava pela praça viajando nas pessoas que ficam paradas curtindo o tempo, ou apenas andando vagarosamente por ela, pude observar, de longe, um grupo sentado em algumas cangas espalhadas pelo chão. Curioso ao ver uma cena tão incomum - afinal, não eram “moradores da praça” -, me aproximo. Eram dois homens, duas mulheres e uma criança. Conversando e sorrindo, não pareciam nem um pouco preocupados com o ambiente ao seu redor. Apenas estavam ali, tranquilos, plenos e felizes.
Decidi puxar assunto e um dos homens me respondeu: “Somos do Rio de Janeiro, é nossa primeira vez em Belo Horizonte, aqui é o primeiro lugar que visitamos”. Enquanto ouço o homem falar, olho ao redor, parecem ser os únicos a não temer estar ali. “São de fora, não conhecem a praça e nem a região”, pensei. Foi então que virei a chave e percebi que eles, alheios ao pensamento preconceituoso de quem mora na cidade, parece ser fácil ver apenas a praça como ela é. Para eles, um lugar seguro e aconchegante.
Terminando a conversa com esse grupo, segui minha viagem de observação. Nesse momento percebi que não soube escolher bem a roupa para a ocasião, pois já estava completamente suado. Enquanto o sol fritava meu couro cabeludo, decidi me dirigir à fonte que fica no centro da praça. Que triste! Desligada, com aspecto sujo e cheia de lodo.
II. A missão continua
Da fonte, consegui ver três grupos bem distintos de pessoas, aquelas mesmas que passam despercebidas na correria do dia-a-dia. Tem o grupo das pessoas que passam com a pressa do cotidiano. Tem alguns que passam mais lentamente, mas sempre em estado de alerta. E tem, ainda, os outros, o grupo formado por “moradores” da praça. A aproximação com qualquer um deles é conflituosa. Uns não querem parar, não ficam parados, desprotegidos , à mercê dos “perigos” da praça. Já com outros, sobre esses “outros” existe a desconfiança, o desacostume social. Afinal, não é comum alguém se aproximar deles, ainda mais para bater papo.

Imagens da Praça Raul Soares durante o dia. Nela podemos ver algumas pessoas acomodadas no gramado.
Fico observando de longe algumas pessoas instalando seus pertences na tentativa de construir uma cabana capaz de proteger do sol e da chuva. Por alguns minutos, tento fazer um mapa mental e traçar uma estratégia de aproximação sem demonstrar qualquer tipo de invasão de espaço. Tento me aproximar de um sujeito que tem uma das maiores instalações, embaixo de uma árvore.
De longe, ouço resmungos. Parece que alguém estava lhe tirando a paciência, por isso vou me aproximando lentamente. Bem à minha frente, outra pessoa tenta se aproximar também. Confesso não saber o motivo, mas a recepção não foi tão boa. Eu, que não tenho o costume de passear pela região, aborto a missão e decido apenas continuar observando.
Vejo duas senhoras caminhando juntas, passando pela fonte, em passos lentos. Ambas senhoras que aparentam ter uma idade mais avançada, de cabelos completamente grisalhos, uma mais nova que a outra. Elas se apoiam, andando de braços dados. Me aproximo e a recepção é confusa. Acho que não é normal alguém parar para conversar aqui, especialmente com um mero desconhecido. Mas eu respirei fundo, abordei e fui direto: questionei o que elas achavam da praça.
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Piorou muito, tem muito morador de rua, tá sempre tudo muito sujo, a fonte mal cuidada. Tá precisando dar uma mexida mesmo, tá precisando arrumar.
Não é difícil perceber que elas não são dali. Kátia - que às pressas não me deu seu sobrenome e idade - não mora na região, mas leva sua mãe a um hospital ali perto com frequência. Ela parece repetir um discurso que eu mesmo ouvi durante toda a vida. Para ela, a praça é toda ruim, não tem nada positivo, só sinônimo de poluição, medo e violência.

Imagens da Praça Raul Soares durante o início da manhã. Nela podemos ver algumas pessoas em situação de rua dormindo no gramado.
Nesse momento, minha mente começou a fazer algumas conexões. Afinal, tinha acabado de conversar com um grupo de pessoas e, para eles, tudo estava legal, a vista era bela e tava tudo tranquilo. Encucado, decidi ir para o lado oposto da praça e, mais confiante - e desafiado por mim mesmo - me dirijo a uma outra mulher, baixinha e de pele negra, de pé sobre o gramado, de quem nem o nome eu sei, com a mesma pergunta.
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Acho que é porque o povo rouba demais né? A praça não tem um banco mais para ninguém sentar.
III. Gabriela está perdida
Quebrado o medo da abordagem, sigo na minha missão. Desde que cheguei na praça, eu tinha observado uma moça, Gabriela, que estava junto com outro rapaz em uma área da praça, ele também de pele negra e altura média. De forma cautelosa, pergunto se ela é frequentadora e o que acha da praça. Gabriela menciona, no decorrer das perguntas, que as pessoas não gostam mais de frequentar a região. Ela deixa escapar que a praça “está melhor” desde que “tiraram o pessoal de lá”, se referindo às pessoas em situação de rua.
Não sei o motivo de Gabriela estar lá, em pé, parada por algum tempo. Ela pede meu celular emprestado, enquanto surge um segundo homem com olhar desesperador, ele parece estar junto de Gabriela, com uma cara de cansado e andando um pouco sem rumo, de um lado pro outro, parecendo estar procurando alguém. Tentei compreender melhor a situação e só entendi que ela precisava ligar com urgência para seus pais que moram em outra cidade.
Ao ouvir a ligação, percebi que ela queria tranquilizar os pais, dizendo que “estava tudo bem” e que logo chegariam na casa da “mulher” para quem eles iriam trabalhar em Belo Horizonte. Gabriela me agradeceu e revelou estarem com fome, pois estavam ali desde às 8 horas da manhã. Bastante tempo, considerando que já tinha passado das 13 horas. Ofereci um prato de comida que, relutantes, recusaram afirmando que logo ficaria tudo bem.

Imagens da Praça Raul Soares durante o início da manhã. Nela podemos ver algumas pessoas em situação de rua dormindo no gramado.
IV. Segurança ou coação (ou os dois)?
Após falar com Gabriela, comecei a observar mais o fundo da praça, olhar para lugares que as pessoas geralmente não olham. Será que é nesses lugares que estão os “perigos”? Com passos um pouco mais lentos, eu já estava me acostumando com o calor e com a barulheira. De longe é possível ouvir e perceber as pessoas tensas e assustadas.
Eu e um amigo que me acompanhava, olhávamos para os lados a fim de entender melhor a situação. Muitas pessoas com o pescoço esticado e barulhos de gente correndo. Os carros da Polícia Militar de Minas Gerais, que antes passavam ali como força de coação, de repente acionam os ruídos sonoros de suas sirenes e, cantando os pneus, partem para as vias laterais da praça. Tinha acabado de acontecer um assalto.

Imagens de carros da Polícia Militar de Minas Gerais circulando dentro da praça.
É preciso novamente assumir a posição do olhar de fora, para ser possível considerar que a realidade, muitas vezes, é melhor percebida por aqueles que estão mais próximos do ambiente. Para as pessoas que têm o local apenas como parte de seus trajetos, é fácil olhar ao redor e vislumbrar um ambiente pouco amigável. Mas, para os que moram na região e que, de fato, têm uma relação longa e duradoura com a praça, o olhar é bastante diferente.
Ana Cristina caminha pela praça diariamente. Costuma, vez ou outra, sentar-se com seus amigos nos bancos - os poucos que ainda restam - em algumas noites para tomar cerveja, comer petiscos e conversar. Para ela é fácil estabelecer afeto e confiança com o local. Da banca do Edgar que ela, mesmo aposentada, ajuda a gerir de forma voluntária, observa a praça e aqueles que a frequentam. Ana não teme mais a praça. Para ela, aqueles que temem, em certa medida, têm preconceito com a região.

Imagem da banca do Edgar, na esquina da Rua dos Guajajaras, esquina com Av. Olegário Maciel.
V. Encontrei um barbudo
Estou novamente caminhando pela praça e andando por ela, encontro um outro morador da região, o Cláudio Meireles. No caminho até seu prédio, vemos uma legião de carros, gente e comércios. A cidade não pára e seu coração pulsa vigoroso. Em um exercício que poucos fazem nesses tempos de correria com a vista sempre pregada nos smartphones, olhei para o chão. Foi lindo ver e sentir uma pintura gigantesca no asfalto.
Circundando toda a praça, na pista interna de asfalto, está a “Anaconda”, pintada em novembro de 2021 durante o 6º Circuito Urbano de Artes (CURA). Protegendo a praça com sua grandeza, a pintura-ritual que representa a guardiã das águas e do rio Amazonas, executada por artistas Shipibo-Conibo, é a maior obra Shipibo do mundo com quase três mil metros quadrados. Os artistas Sadith Silvano e Ronin Koshi, descendentes do povo originário do Peru e que vivem na amazônia peruana, deram vida à Anaconda.
No caminho em direção ao apartamento de Cláudio, passei em frente à Primeira Igreja Batista de Belo Horizonte, com sua arquitetura neogótica inaugurada em 1927. Também pude identificar as características do Art Déco ainda visíveis da fachada em ruínas do Cine Candelária, que teve todo seu interior sucumbido em um incêndio no trágico dia 01 de outubro de 2004.

Imagem da Primeira Igreja Batista de Belo Horizonte, tirada da Praça Raul Soares.
Ao chegar no Edifício Randrade, na esquina da avenida Augusto de Lima com a praça, sinto que ali é um local carregado de história e de afeto. Imagino que Cláudio optou por manter, em seu apartamento, artigos de decoração e móveis que aparentam ser da época em que seus pais ainda estavam vivos.
Da sua varanda, no nono andar, a vista é de impressionar. De lá, dá pra ver cada detalhe da praça, como se fosse uma lupa apontada para tudo que acontece no local. Diferente do ambiente geral que se vê da janela do apartamento de Ana, da varanda do Cláudio é possível ver todos os detalhes.
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Meu pai morreu em 2010 e todo domingo de manhã ele descia com o tabuleiro de damas dele. Ele tinha uma turma de jogadores de dama. Onde ele jogava a dama dele? Nos bancos da praça.
Enquanto Cláudio me mostrava algumas fotos de sua infância, ele contava que a Raul Soares era quase seu parque de diversões, onde brincava com os amigos. Nostálgico, ele recorda as vezes que pulava na fonte, um mergulho que sempre vinha acompanhado de um grito de sua mãe. Lá das alturas, debruçada na varanda do nono andar, a ordem era clara para ele sair da água.

Fotos de arquivo de Cláudio, onde ele e amigos de infância aparecem em momentos de lazer na praça Raul Soares.
Preciso aqui relembrar que, enquanto andava pela praça procurando pessoas com quem conversar, abordei um comerciante que, ligeiro, me disse: “Vai perguntar aquele moço barbudo sentado alí, ele vai saber te falar tudo sobre essa praça”. A relação de Cláudio, esse moço barbudo, com a Raul Soares é antiga. São 42 anos de história. Ele é nascido e criado no mesmo apartamento onde me recebeu. O edifício onde mora, o Randrade, com o decorrer da nossa conversa, pude descobrir que é um dos mais antigos da cidade de Belo Horizonte, erguido em 1937.

Cláudio na janela da varanda, após me mostrar fotos de arquivo pessoal.
Em todos os momentos da história da vida do Cláudio, a praça Raul Soares está presente. Morador vizinho da praça há tanto tempo, olhar pela janela da varanda é quase que olhar para a história de sua vida, de sua infância e de momentos marcantes. São inesquecíveis os dias em que, quando criança, descia para a praça para brincar com os amigos, ou então os desfiles militares que participou durante o período em que serviu no Exército Brasileiro.

Fotos de Cláudio me mostrando detalhes na praça Raul Soares.
Nas análises de Cláudio, notei o profundo descontentamento que ele demonstra com as recentes mudanças que vêm acontecendo na praça e no seu entorno. Ao atrair bares que têm boa repercussão e ampla procura por um público mais elitizado, a frequência da praça e região cresce e passa a receber novas e diferentes pessoas. Apesar de mudar a realidade da praça, Cláudio ainda acredita que isso é capaz de proporcionar uma melhor experiência para quem vive naquele local, devido à necessidade, por exemplo, de aumento do policiamento.
Sob sua ótica, assim como pela de Ana, os problemas apontados pela população, como a violência e o aspecto sujo, remontam pensamentos antigos e antiquados sobre a praça. Para ele, são pessoas que se recusam a enxergar a importância, além da grandeza cultural e histórica do local. Existem problemas, assim como em todo espaço urbano, mas difamar a história, sem ouvir as pessoas que ali vivem para entender a relevância do lugar, nunca é um caminho bom.
VI. Aqui tem história
Uma gigantesca obra, inaugurada em 1936, simbolizava o lazer, a grandiosidade e a valorização da manutenção de espaços de convívio social. À época, esse marco para a população atraia a atenção não só de comerciantes, pela privilegiada localização, mas também aqueles que buscavam nela refúgio do cotidiano. Ela era exatamente o que uma praça pública deve ser, pelo menos para mim: um espaço para todos e que, para todos, possa propiciar memórias, promovendo a alegria, a coletividade e momentos com o outro, ou seja, um lugar capaz de ser guardado no coração.
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Arquivo Estado de Minas.
Dezesseis anos após ser criada a praça, nasceu o Cine Candelária, em 1952, local carregado de histórias que, muitas vezes, se confundem com a história da própria praça. O nascer, os anos de glória, os anos de angústia e os anos de difamação fizeram desses lugares especiais, apenas mais um lugar na capital mineira. Ou, no caso do Cine, mais nenhum lugar, pois segue em ruínas. É interessante, e ao mesmo tempo angustiante, perceber que os espaços são um pouco como nós. Eles carregam as marcas do tempo, deixam traumas e memórias, têm o poder de alterar o rumo da sua história.
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Cine Candelária - Pedro Graef/EM - 16/8/1989
Vivendo seus anos de ouro no início dos anos 70, o Cine Candelária reunia amantes da sétima arte em suas sessões de cinema. Com as mudanças na indústria do entretenimento e a rápida popularização da TV, sua história foi drasticamente mudada no fim do século. O majestoso prédio transformou-se em ponto de encontro para aqueles que procuravam diversão adulta em filmes pornográficos, nova categoria que passou a ilustrar sua tela, até fechar suas portas em 1995.

imagem das ruínas do Cine Candelária vista do apartamento de Cláudio. Hoje funciona no local um estacionamento.
Apesar de toda a difamação que a praça sofreu nessa época, ainda era possível perceber que existia um fator de resistência sobre sua história. Quase que como uma adrenalina, na época alguns ainda insistiam em frequentar o local. Muitos por um motivo bem específico.
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O lugar onde meu pai conheceu minha mãe. Antigamente tinha o “footing”... as moças ficavam sentadas no banco e os moços rodando na praça para poder ver as moças.
O amor e a Praça Raul Soares têm histórias dão pano pra manga. Em uma época sem aplicativos de namoro e sem as facilidades proporcionadas pelos smartphones e redes sociais, as pessoas “caçavam” seus amores à moda antiga - vale o trocadilho. Tal qual manequins expostos em uma vitrine, o footing - feito a pé como diz a tradução literal - era uma prática comum na Raul Soares. Assim se conheceram os pais de Ana Cristina, que morou boa parte de sua vida no bairro Prado, mas há 11 anos se mudou para a região. Ela voltou, literalmente, para suas origens, para o local que, se podemos assim dizer, propiciou a sua existência.

Ana Cristina mostrando o porta retrato com foto dos pais.
VII. O comércio tomou conta
Em 2013, a praça acordava um pouco diferente. Após meses de obra, poeira, terra, areia e cimento, renascia o marco zero da cidade de Belo Horizonte. Um ambiente que antes aliava o aspecto aconchegante de uma praça, com suas áreas verdes e chafariz, aos grandes prédios ao redor, acordou com um paisagismo mais moderno e com características mais urbanas.
Bancos menores e áreas de passagem maiores: uma estratégia urbanística que reforça o “passageiro”, a “passagem” e limita o local de acomodação, algo que demanda mais tempo e espaço. Em troca da segurança, da iluminação, sob o discurso da melhora nos padrões, desde então a praça afetiva tem perdido espaço para a praça comercial. Claro, regime capitalista!

Imagem da Praça Raul Soares durante a tarde.
De lá para cá, a praça já passou por outras revitalizações, em menores proporções, na sua estrutura. Um processo que, aos poucos, tem modificado a relação das pessoas e do comércio com a região, já que a cada novo mês surge um novo estabelecimento nas redondezas. Hoje, em 2024, em volta da praça temos uma unidade da famosa rede de fast food McDonald 's, uma loja da onipresente rede de drogarias Araujo, uma legião de bares e restaurantes descolados - e outros nem tanto -, além de alguns topa-tudo e inúmeros pequenos comércios locais que aos poucos vão desaparecendo para dar espaço às “lojas com pedigree”.

Imagem do McDonald's da praça Raul Soares.
Esses bares e restaurantes descolados são estabelecimentos que atraem pessoas de longe, gente que desce dos bairros mais nobres de BH ou da região metropolitana para ocupar a Raul Soares. Isso mesmo, vou escrever novamente: a galera chique dos bairros nobres de BH está descendo para a Raul Soares. Esse é um fenômeno inimaginável há alguns anos.
VIII. O Babel é uma Babel
Símbolo da nova Raul Soares, na esquina com a Avenida Bias Fortes, dá pra notar uma varanda, no segundo andar de um prédio, que está sempre cheia e movimentada. Pode ser nos horários de almoço, na hora do happy hour e até mesmo mais à noite, sempre lotada. Esse é o Babel, um bar-restaurante inaugurado há menos de um ano, em 2023, e que representa um dos símbolos da nova Raul Soares, desse “Centro para todos” usado nos materiais de comunicação do governo municipal.
Ah, se da janela da Ana a gente vê a praça como um todo, e se da varanda do Cláudio dá pra ver os detalhes da praça, pela varanda do Babel a gente se sente dentro da praça, imerso, mergulhado. O Babel é um estabelecimento que, mesmo após o período de inauguração, que deixou a população deslumbrada nos seus primeiros meses, deu e continua dando certo.
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Imagem da varanda do Babel. Ao fundo está a Praça Raul Soares.
Quando você chega, logo é abordado educadamente com um “pois não”, ainda no primeiro piso, vindo da equipe de recepcionistas. É que tem fila de espera. Nesse dia, especificamente nesse dia, não fui para disputar a varanda ou desfrutar do chopp e da porção de mandioca com manteiga de garrafa. Fui me encontrar com o Alfredo.
Subindo as escadas charmosas, com revestimento de pedra nas paredes e estilo que lembra o vitoriano, pensei: “bom, será que estou apresentável para falar com um dos sócios do Babel?”. “Pode sentar, logo ele chega”, disse a atendente. Assim fiz, aguardando o Alfredo por volta das 18h30 de uma sexta-feira. O happy hour ainda estava começando, por isso a casa ainda não estava tão cheia.
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Imagem de Alfredo na varanda do Babel.
IX. É, o Alfredo ama BH
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Na época, passando por aqui, a gente já sabia que era o Scaramouche, mas estava abandonado. Quando eu vim pela primeira vez, eu pensei: “Nossa Senhora, que vista maravilhosa é essa?”.
O Alfredo Lanna tem 36 anos, é natural de Belo Horizonte e fez Arquitetura e Urbanismo na PUC, no Campus do Coração Eucarístico. Ou PUC do Coreu, para os mais íntimos. Pela nossa conversa, uma coisa ficou muito clara pra mim: o Alfredo não nasceu para ser arquiteto! Logo após se formar e se aventurar na vida acadêmica como professor substituto - chegou a se arriscar em um mestrado -, abriu um bar com alguns amigos nas redondezas do Campus, em 2012.
Até sua vida esbarrar com a vida da praça - de tão íntimo, estou quase me referindo a ela apenas como “a Raul” -, Alfredo teve um bar ainda na famosa Rua Sapucaí, outro ponto de Belo Horizonte alvo das revitalizações. Seu olhar tem um brilho sincero quando conta sua história de vida, desde que começou a se aventurar pela área da cultura, lazer e entretenimento.
Auto-denominado “apaixonado por BH” e pela cultura, Alfredo reconhece que a proximidade com a praça traz, sim, alguns problemas, que são comuns aos grandes centros, como poluição, população de pessoas em situação de rua e violência. Mas, também, são inúmeros os prazeres, como a sensação de viver a cidade em plenos pulmões. É evidente a alegria dele por poder estar ali no encontro das avenidas, no grande centro e marco zero da capital.
Durante nossa conversa, que durou pouco mais de uma hora, pude notar as pessoas chegando e ocupando as mesas. O local estava enchendo e quem chegava ia direto procurar as laterais, as bordas, de frente para a praça. Enquanto eu as observava tomando seus lugares, o quadro foi se formando em meus olhos: a praça estava sendo ocupada por pessoas que não estavam em seu interior, mas que sentiam e viviam esse espaço tão generoso.

Imagem do Babel, do ponto de vista da praça Raul Soares.
X. Fui capturado
E então, de repente, chegou a minha vez. Preciso admitir que também fui vítima de um certo abraço. Do passeio pela praça até o 28° andar do Edifício JK para conversar com Ana, da conversa com Cláudio na varanda do Edifício Randrade até o papo com Alfredo na varanda do Babel, fui sendo arrebatado aos poucos. Ou foi mesmo de repente? Quando percebi, quase como um ímã, o flanar se transformou em armadilha para mim e fui agarrado pela Raul.
Por meses eu passei pela praça. Observei suas mazelas. Vasculhei seus arredores. Conheci seu entorno. Senti seus perfumes e odores. Respirei sua beleza. Tudo aquilo que me falaram sobre andar na praça, eu experimentei. Mas eu experimentei mais quando andei pela praça capturando percepções. Eu vi como as pessoas se comportam nela e isso, há poucos meses, revelou para mim um sentimento de pertença.
Aqueles que olham de longe, pregam na praça o estigma do descuidado, do sujo e nojento, do perigoso. Mas, não! Foi conversando, observando e vivendo cada vez mais aqui por perto que me vi perdidamente apaixonado pela praça e por essa região. Esse é um lugar carregado de história e submerso em cultura. Aqui é uma mistura comercial e afetiva que nos faz respirar fundo a cidade.
É um abraço da “Anaconda”. É sim! O abraço que protege, o abraço que faz sentir a proteção. Ando pela praça de dia, de noite, pela borda, pelo centro. Não tenho mais os receios que tive um dia. Sinto e sei que a praça não é esse monstro que foi pintado. Não é esse gigante das águas que nos sufoca.
E, assim, eu observo a praça que me habita. Assim é a praça que habito.
Por vezes passo em frente ao Randrade, vejo as ruínas do Cine Candelária, passo pela banca do Edgar, me lembro da Ana, almoço no Babel, escuto de longe as sirenes, as buzinas, vejo as barracas e passo por pessoas deitadas na grama. Fico refletindo que, assim como eles, agora é minha vez de construir afeto e memória nesse lugar, sobre o meu ponto de vista.
Um local como esse passa, e sempre vai passar, por mudanças e reformas. É assim, a gente também muda. Vai haver muita gente falando mal. Vai ter gente falando bem. Como vai ter gente falando, com brilhos nos olhos, de lembranças resgatadas nas memórias e em seus baús.
Um lugar como esse vai sentir as dores dessa sociedade que adoeceu e não enxerga o outro com empatia. E, pior, ainda vai levar a culpa. Não podemos esquecer que essa praça é lar. Para muitos ela é lar. E, sendo lar - enquanto não resolvem o problema dos sem-teto e desassistidos -, ela precisa ser cuidada. Ela pode evoluir, mas ela não pode deixar de aconchegar todos que têm o direito de desfrutar dela.
Observo a praça, agora da ampla janela aberta da minha sala de estar. Sim, estou morando no sétimo andar do Edifício JK. Eu procurei um apartamento para morar há mais de um ano, mas quando vi esse, de onde escrevo essas palavras apaixonadas, contratei o aluguel de olhos fechados. Sem pestanejar. Sem visitar. Sem qualquer garantia. Quase como um feitiço.

Gabriel na janela da sala de seu apartamento, apontando em direção à Praça Raul Soares.

Imagens da vista da sala do apartamento. Ao fundo, está a praça Raul Soares.

Imagens do corredor do Edifício JK.
Agora que minha história esbarra com a da praça, como será que sentirei essa paixão daqui algum tempo? Será que alguém vai bater à minha porta e perguntar: “Gabriel, posso te entrevistar? Quero conhecer sua história e saber como você vive essa região onde mora.” Ou melhor, será que eu mesmo, daqui de tão pertinho, imerso no cotidiano da região, nas entranhas da Raul, vou bater em mais portas perguntando: “Ei, você TAMBÉM gosta de morar por aqui”?